Nos últimos anos, o microbioma intestinal vem ganhando destaque na oncologia, especialmente após a descoberta do seu potencial de interferir diretamente na carcinogênese e na eficácia dos tratamentos oncológicos
1. Com isso, vários são os exames atuais que avaliam a composição da microbiota intestinal e a presença de bactérias benéficas e patogênicas.
Como as bactérias podem causar câncer?
Quando pensamos na associação bactéria e câncer, lembramos imediatamente da relação da
Helicobacter pylori com câncer gástrico, mas é importante ressaltar que ela não faz parte da microbiota saudável. A
Fusobacterium nucleatum, por exemplo, tem associação com câncer colorretal. Ao promover disbiose, essa bactéria reduz a diversidade microbiana e rompe o equilíbrio entre espécies protetoras, como
Lactobacillus e
Bifidobacterium, e microrganismos pró-inflamatórios, como
Bacteroides fragilis e
Enterococcus. Esse desequilíbrio favorece um ambiente inflamatório crônico e alterações epiteliais que contribuem para a carcinogênese. A presença do
F. nucleatum em tecidos tumorais e nas fezes está associada a piores desfechos clínicos
2.
Outro microrganismo com potencial oncogênico é a
Salmonella, especialmente os sorotipos
Typhi e
Enteritidis. Infecções crônicas por
S. Typhi estão associadas a um risco até oito vezes maior de carcinoma de vesícula biliar, enquanto infecções por
S. Enteritidis, mais comuns e frequentemente subdiagnosticadas, têm sido relacionadas a um aumento significativo do risco de câncer colorretal. Essas bactérias agem modulando vias de proliferação e sobrevivência celular, como AKT, β-catenina e mTOR. Nesse contexto, a ativação sustentada da via mTOR, observada após infecção por cepas clínicas de
Salmonella, pode ser revertida com inibidores da mTOR, apontando para uma possível estratégia terapêutica personalizada em tumores associados a essa infecção bacteriana
3.
As bactérias podem ter um papel benéfico no tratamento do câncer?
Paradoxalmente, a microbiota intestinal também pode ser uma aliada no tratamento oncológico. Evidências clínicas mostram que pacientes com melanoma ou câncer de pulmão tratados com imunoterapia anti-PD-1/PD-L1 e que não foram expostos previamente a antibióticos apresentam maior sobrevida comparada aos que receberam antibióticos
4. Esse dado reforça a ideia de que a integridade da microbiota intestinal é importante para a eficácia da imunoterapia.
Entre as bactérias mais estudadas com efeito benéfico no tratamento oncológico, destaca-se a
Akkermansia muciniphila, cuja presença tem sido associada a melhores respostas a inibidores de PD-1.
Bifidobacterium spp. também demonstrou potencial para melhorar o controle tumoral e amplificar a eficácia de bloqueadores de PD-L1. Para pacientes tratados com anti-CTLA-4, bactérias como
Burkholderiales e
Bacteroides fragilis ou
B. thetaiotaomicron foram associadas a melhores desfechos clínicos em pacientes com melanoma
1.
Existe resistência ao tratamento oncológico provocada por bactérias?
Determinadas bactérias da microbiota intestinal têm sido associadas à resistência a terapias antineoplásicas.
Fusobacterium nucleatum, por exemplo, reduz a sensibilidade a agentes como
5-fluorouracil e
oxaliplatina em câncer colorretal.
Escherichia coli também pode interferir na eficácia do
5-FU, por meio da produção da enzima diidropirimidina desidrogenase bacteriana, capaz de inativar o fármaco. Bactérias do gênero
Proteus contribuem para resistência a múltiplos quimioterápicos, incluindo
irinotecano,
oxaliplatina,
ciclofosfamida e
gencitabina (este último revertido com o uso de
ciprofloxacino)
1.
A interferência da microbiota nos eventos adversos do tratamento oncológico
Além de influenciar a eficácia terapêutica, a microbiota intestinal também desempenha um papel importante na modulação dos efeitos colaterais relacionados ao tratamento. A presença de bactérias do gênero
Bacteroides tem sido associada a uma menor incidência de colite induzida por inibidores de CTLA-4 em pacientes com melanoma. Em contraste, uma maior abundância de
Fusobacterium e de certas
Firmicutes foi relacionada ao aumento de eventos adversos imuno-mediados
1.
A microbiota será o próximo alvo da oncologia de precisão?
Entre as estratégias mais promissoras na interface entre microbiota e oncologia está o
transplante de microbiota fecal (FMT, da sigla em inglês). Essa ferramenta já vem sendo usada com aprovação pelos órgãos reguladores para prevenção de infecção por
Clostridioides difficile, inclusive com apresentação via oral
Vowst® da Seres Therapeutics, Inc.
Em oncologia, o FMT tem demonstrado potencial de reversão da resistência a inibidores de
checkpoint em pacientes com melanoma avançado. Em um estudo clínico de fase I (NCT03353402), 10 pacientes refratários a anti-PD-1 receberam FMT de dois doadores com resposta completa sustentada ao
nivolumabe. Após a reintrodução do anti-PD-1, 30% dos pacientes apresentaram benefício clínico duradouro, incluindo duas respostas parciais e uma resposta completa, com sobrevida livre de progressão por pelo menos seis meses. Concomitantemente, em um estudo fase II (NCT03341143), 40% dos pacientes com melanoma resistente a inibidores de
checkpoint apresentaram benefício clínico após FMT combinado com
pembrolizumabe, incluindo uma resposta completa, duas respostas parciais e três casos de doença estável por mais de um ano
5.
Apesar do potencial terapêutico do FMT, sua aplicação clínica ainda levanta preocupações de segurança, como a transmissão de patógenos e genes de resistência a antibióticos. Além disso, preocupam também os eventos adversos relatados, que incluem bacteremia, infecções virais e um caso de sepse fatal, o que levou à suspensão temporária de ensaios clínicos com FMT pelo FDA em 2019.
Outra estratégia em estudo para manipulação da microbiota é o uso de
probióticos, microrganismos vivos com potencial de restaurar o equilíbrio intestinal. Por exemplo,
Lactobacillus brevis demonstrou reduzir a mucosite oral em pacientes com câncer de cabeça e pescoço submetidos à radioquimioterapia. Em câncer colorretal, uma combinação com
Bifidobacterium infantis, Lactobacillus acidophilus, Enterococcus faecalis e
Bacillus cereus atenuou a disbiose e complicações gastrointestinais após cirurgia. Já em carcinoma nasofaríngeo, uma mistura com
Bifidobacterium animalis, Lactobacillus rhamnosus e
L. acidophilus reduziu a mucosite oral durante o tratamento. Além disso, experimentalmente,
Lacticaseibacillus rhamnosus Probio-M9 mostrou potencial em melhorar a resposta à imunoterapia (1).
Conclusão
Em resumo, a microbiota intestinal surge como peça importante no cenário da oncologia, influenciando não só o surgimento de tumores, mas também a eficácia e os eventos adversos dos tratamentos atuais. Ferramentas inovadoras, como o transplante fecal e o uso de novos probióticos abrem as portas para uma oncologia preventiva e com tratamentos mais eficazes. Porém, ainda há um longo caminho a percorrer em relação a segurança, padronização e melhor entendimento dos mecanismos envolvidos na interface microbiota e câncer, para que essas abordagens possam ser adotadas na prática clínica.
Referências:
- Sun J, et al. Gut microbiota as a new target for anticancer therapy: from mechanism to means of regulation. npj Biofilms Microbiomes. 2025;11:43.
- Galasso L, et al. Unraveling the role of Fusobacterium nucleatum in colorectal cancer: molecular mechanisms and pathogenic insights. Cancers. 2025;17(3):368.
- Stévenin V, Neefjes J. Salmonella, the insidious contributor to gallbladder and colon cancers. Nat Rev Cancer. 2025;25:317–318.
- Pinato DJ, et al. Association of prior antibiotic treatment with survival and response to immune checkpoint inhibitor therapy in patients with cancer. JAMA Oncol. 2019;5:1774–1778.
- Yang Y, et al. Fecal microbiota transplantation: no longer Cinderella in tumour immunotherapy. EBioMedicine. 2024;100:104967.